TEXTO POR JORGE GONÇALVES

Quantas vezes viajamos através das lembranças? E quantas vezes essas lembranças nos remetem a algo delicioso e marcante que comemos ou bebemos no passado? Ou simplesmente algo que sentimos o aroma… Parece um pouco surreal pensar que os sentidos tem o poder de nos transportar sem sairmos do lugar, voltando anos ou décadas atrás, mas isso é possível graças (em partes) as memórias olfativas e gustativas.

Quando pensamos em alguns lugares que já estivemos, quais memórias vem a tona? Quais sabores provamos e que nos despertaram diferentes sensações?

O intercâmbio de sabores possibilita as pessoas se conectarem de forma especial, através de memórias. As vezes alguma fruta nos faz relembrar algo muito importante e que marcou nossa vida, e pode ser que não temos mais acesso a ela… Então como reviver essa experiência, caso ela seja cultivada em outro lugar, outra cidade ou outro pais?

E ao passo que a humanidade foi aprendendo a lidar com períodos de fartura e de escassez, foi-se aprimorando suas técnicas de conservação dos alimentos, primeiro para garantir que tivessem alimento suficiente, mas que depois acabou se tornando um habito e posteriormente, uma tradição.

O “produto” resultante do processo de cocção e acréscimo de conservantes naturais que as frutas eram submetidas não tinha exatamente o sabor e o frescor de quando consumidas in natura, porém era possível, através das memórias sensoriais relembrar pontos que possivelmente foram marcantes, por exemplo uma safra mais doce das maçãs, a felicidade de uma colheita farta de marmelos ou algum encontro ou acordo selados à sombra de tamareiras ou até mesmo alguma característica local muito marcante do tipo de solo ou clima (me refiro a terroir, termo utilizado principalmente referindo-se à produção de uvas, mas que na gastronomia se tornou muito mais abrangente e complexo e que rende um outro texto somente sobre o assunto) que ficava evidente no paladar. E esse despertar das lembranças é possível até hoje.

Quando falamos de algo muito especifico como frutas, uma forma de perpetuar e fazer com que mais pessoas descubram e conheçam os sabores é através da GELEIA. É praticamente impossível estimar quantos tipos de frutas existem no mundo, porém há levantamentos e estudos que apontam cerca de 300 mil espécies de plantas comestíveis existentes no planeta, das quais consumimos menos de 1%. E dessa pequena parcela, que engloba legumes, verduras, vegetais e condimentos, no que diz respeito as frutas, a maior parte são comerciais (mais comuns no mercado, independente de serem nativas ou exóticas) e a menor parte são de espécies não comerciais, e que geralmente são nativas, espontâneas, exóticas ou raras. Ficou um pouco confuso? Eu vou explicar melhor: banana, manga, melancia, laranja, tangerina, uva e côco são frutas exóticas em nosso país mas de grande produção tanto nacional quanto em seus países de origem (lembrando que nenhuma dessas citadas anteriormente são nativas do Brasil). Através de irrigação, fertilizantes e tecnologia é possível tê-las praticamente o ano todo. Já com as frutas nativas como jabuticaba, pitanga, camu-camu, uvaia, cambuci, araçá e etc, cada região produz de acordo com o período da safra, então o consumo da fruta in natura fica restrito a esses momentos.

E é justamente por essa questão que existe a GELEIA. A “criação” desse alimento milenar aconteceu justamente para suprir momentos de escassez. Durante o período da safra as frutas eram consumidas frescas mas no momento em que havia mudança de estação, outono e inverno se aproximavam e era preciso fazer algo para garantir que tivessem alimento durante os períodos mais frios. Preservando parte da colheita, era garantido que teriam o que comer, desde conservas de frutas, legumes e vegetais, até carnes, queijos e pães.

A partir do momento que os povos até então nômades se fixaram em territórios e deram início a cultivos diversos, novamente eles começam a circular por outras terras, outras tribos e por outros costumes. E é justamente ai que novos sabores foram descobertos e introduzidos. Esse tipo de comportamento proporcionou trocas enriquecedoras e que muito agregaram na evolução alimentar dos povos.

E isso acontece há milênios, desde quando assírios utilizavam mel para adoçar suas preparações e esse costume foi incorporado a outras sociedades. Ou como os grãos de cacau eram utilizados pelos maias há mais de 2500 anos atrás, seja em sua comida ( provavelmente como condimento) seja em rituais dedicados aos deuses, seja como bebida feita com as sementes e até acrescida de pimenta, onde era tida como estimulante, até a origem do chocolate que conhecemos, com adição de açúcar, que vem da época colonial.

Essa movimentação de sabores e aromas nos permite experimentar de outras culturas, outras vivências e enriquecer cada vez mais nosso paladar. É como se tivéssemos um “arquivo” e lá deixamos guardado todos os sabores que já provamos, e a cada acesso a esse arquivo, resgatamos sentimentos, sensações e memórias.

Esse intercambio é importante para nos lembrar quem somos e de onde viemos e também para mostrar aos outros o nosso valor, nossa cultura e nossos sabores. É muito mais que uma troca, é um presente que se oferece um ao outro! O Brasil tem um vasto território, isso nos permite muitas experiências, de norte a sul, de leste a oeste, e em caso de frutas muito perecíveis ou uma safra muito pequena em determinada época do ano, por que não transformar parte da colheita em geleia e ter por muito mais tempo acesso a sabores tão especiais que nos fazem viajar e reviver memórias e grandes emoções?

Certa vez alguém me disse que quando sente no ar o perfume da canela em pau e por instantes fecha seus olhos, automaticamente lhe faz lembrar da infância, do arroz doce e do bolinho de chuva que a avó preparava com tanto carinho. E esse tipo de memória só foi possível por que de alguma forma essa especiaria foi trazida para o Brasil, apreciada e adotada pelo povo e pela culinária, da mesma forma que alguns estrangeiros provaram o nosso açaí e hoje é um sucesso fora do país e tornou-se conhecido mundialmente pelo sabor e por suas propriedades energéticas. Dai pode-se concluir que esse intercâmbio tem grande importância para nós, tanto como orgulho em ver um produto nacional e nativo conquistando espaço e o paladar pelo mundo, tanto comercial e social. É importante para nós, e principalmente para todos!