Houve uma época em que as geleias eram usadas com uma finalidade muito além do que se possa imaginar: para fins medicinais!
TEXTO POR JORGE GONÇALVES
Nestes tempos de pandemia, a chegada da vacina nos permite enxergar além e ver um possível fim do túnel. Temos sorte porque a vacina é uma invenção recente. Por muito tempo, nossos ancestrais tentaram combater epidemias e doenças com meios que hoje pareceriam ridículos, para não dizer absurdos. Para tratar e curar, demos um lugar de destaque às plantas, especiarias, mas também ingredientes de origem animal (sanguessugas, víboras, excrementos diversos e lodo de sapo) bem como sangrias e enemas.
Mesmo sem a existência da medicina como ciência e, portanto, sem a presença de médicos, os curandeiros das tribos primitivas já preparavam suas poções e remédios, com resultados mágicos, com plantas que tinham à mão. As grandes civilizações primitivas (Índia, Mesopotâmia, Egito e China) já começavam a dominar o uso de certas drogas.
Entre todos os remédios e medicamentos oferecidos aos doentes ou para prevenir doenças, encontramos, surpreendentemente … a confeitaria, mesmo que no início ainda não levasse esse nome.
A medicina é de fato a mãe da confeitaria. Está na origem de GELEIAS, frutas cristalizadas, pasta de frutas, maçapão, torrone e berlingot entre tantos outros produtos.
ANTES DOS MESOPOTÂMIcOS, Entre gregos e romanos: confeitaria medicinal feita principalmente a base de mel
Muito antes da chegada da cana-de-açúcar na Europa, os primeiros doces eram feitos de mel e amplamente utilizados na medicina, a princípio pelos povos mesopotâmicos e mais tarde pelos gregos e romanos.
Além de antisséptico, tem propriedades curativas e trata o sistema respiratório. A partir do século 4 a.C. Hipócrates (-460 a -370) incentivou seu uso e forneceu um remédio contra a pleurisia feito de amêndoas moídas e mel. É esta composição que deu origem ao marzipan.
Alguns séculos depois, o médico greco-romano Claude Galien (129-201) propôs acalmar a tosse com uma mistura de amêndoas, pinhões inteiros e mel. É o ancestral do nougat. Claude também disponibiliza uma receita de geleia contra males estomacais, a base de marmelos. Temos então a origem do cotignac. Nesta receita, ele mistura marmelos cristalizados, mel e especiarias e os usa para promover a digestão e como antidiarreico.
Doçaria no mundo árabe: a introdução do açúcar
A partir do século VIII, os muçulmanos recuperam a herança greco-romana da doçaria traduzindo as obras de Hipócrates e Galeno, modernizando-as. É assim que surgem novos remédios em que o mel vai aos poucos competindo com um novo produto do Oriente: o açúcar de cana-de-açúcar.
A introdução da cana-de-açúcar é a mais importante das inovações, perdendo somente para o nascimento da doçaria propriamente dita. Na mente dos homens medievais e árabes, o açúcar é um tipo de mel que tem os mesmos benefícios (combate a dor de garganta e no peito, dá força, estimula a digestão), mas com propriedades dez vezes maiores. Acredita-se que os remédios à base de açúcar são mais poderosos do que aqueles que incorporam mel. No entanto, não abandonaram o mel com suas múltiplas virtudes (anti-inflamatório, antisséptico natural, usado também para promover a cicatrização e curar queimaduras).
No livro O BANQUETE DE PSIQUE (e você pode comprar o livro clicando AQUI) o autor Gustavo Barcellos conta no capitulo ESBOÇO PARA UMA ALQUIMIA DO AÇÚCAR, de forma filosófica o açúcar que é “sofisticado pela imaginação, metafórico das experiências doces, retém essas funções: adoçante, conservante, dar consistência, cristalizar.” Vale muito a pena se aprofundar nesse assunto através dos textos de Gustavo.
Com o açúcar, os árabes puderam aprimorar as receitas de torrones , de geleias de frutas , inventam as frutas cristalizadas e o ancestral do berlingot.
O estudioso persa Avicena (980-1037) detalha a preparação de frutas cristalizadas com propriedades digestivas em seu tratado VII intitulado em latim De conditis. A técnica consiste em retirar a água da fruta e substituí-la por açúcar.
Por sua vez, o cirurgião Albucasis (Córdoba 936-1013), descreve a receita do berlingot, ancestral dos berlingots de hoje, mas também de balas e pirulitos:
“Você pega um ou dois, ou no máximo três quilos de açúcar, coloca-o em um recipiente de cobre estanhado, molha o açúcar com água fresca suficiente para cobri-lo, cozinhe até que a água evapore, examine seu ponto derramando uma gota no mármore; se escorregar por entre os dedos ou palitos, retire rapidamente o recipiente do fogo, despeje sobre uma superfície de mármore ainda quente, dobre as bordas para o centro, puxe-o para fora e espalhe-o entre as mãos, …”
A chegada do açúcar na Europa e seu uso na medicina
O mundo greco-romano já conhecia o açúcar graças às expedições de Alexandre, o Grande, à Índia (por volta de 325 a.C.). Esse conhecimento parece ter caído no esquecimento por um momento para ser redescoberto na Idade Média pelos árabes.
No século XI, no regresso das cruzadas, os europeus trouxeram a cana-de-açúcar para a Europa cristã, bem como os vários doces inventados ou melhorados pelos árabes, como as geleias e as frutas cristalizadas.
Açúcar e confeitaria eram produtos raros e caros, por isso foram inicialmente reservados aos doentes e convalescentes, depois apareceram nas mesas dos senhores ricos.
Alguns produtos de confeitaria são considerados remédios puros. Outros são, como as especiarias, tanto um remédio para ajudar na digestão quanto um produto gastronômico para servir no final de uma refeição. Para os médicos medievais, a boa digestão era de fato percebida como a condição imperativa de uma boa saúde.
Com o aumento do conhecimento e a melhoria dos sistemas de classificação, surgiram os primeiros médicos e os primeiros autores que começaram a coletar informações e realizar tratados especializados. Plínio e Aristóteles são os primeiros a abordar e registrar esses estudos. É também na Grécia Antiga que surgiram importantes especialistas em plantas medicinais, como Dioscórides e o botânico Teofrasto.
O número de remédios desenvolvidos na Idade Média era grande, sendo alguns voltados para o tratamento da impotência, contracepção e concepção, o que diz muito sobre a preocupação da época com essas questões. Para um homem que perdeu sua “condição” e está com “frio no corpo”, o remédio indicado era o seguinte: misturar sementes de erva-doce e salsa, agarwood, junco, casca de canela, cardamomo e algumas outras ervas (que não estão legíveis na receita) esmagar tudo em um pilão e colocar em um recipiente, adicionar o açúcar e derreter com o calor, até formar uma espécie do que chamamos hoje de “xarope”. Feito isso, colocar o que sobrou em um copo e beber. Segundo a indicação da eficácia, “esta bebida deve ser excelente para restaurar a potência viril nos homens.”
Durante a Idade Média surgem os primeiros indícios da existência de Farmácias como local físico de dispensação de medicamentos. A primeira farmácia da Europa data de 1221, criada pelos frades dominicanos no convento de Santa Maria Novella, em Florença, na Itália.
Desde o século XV, para obter o título de mestre boticário e exercer essa profissão, era necessário passar por um exame. Este nome desaparece no início do século XIX, quando os estudos de Farmácia são regulamentados e surge a figura do farmacêutico.
Na Europa, os doces são, portanto, usados principalmente por suas virtudes terapêuticas. Aqueles trazidos das Cruzadas como “geléia seca” são aperfeiçoados:
- Pasta de frutas Auvergne (compota seca) – Século XII
As primeiras geleias de frutas conhecidas datam da antiguidade. A principio feita pelos mesopotâmicos com o excedente da safra e conservadas no mel, e posteriormente pelos gregos e romanos, que a faziam seguindo o método ancestral e só mais tarde utilizando açúcar de cana importada do Oriente. Sendo um produto extremamente raro, seu consumo na medicina era em quantidades moderadas e reservado a uma elite. Os árabes teriam então se inspirado nas receitas greco-romanas enquanto as aprimoravam. O que é certo é que eles apareceram na França no século XII. Auvergne logo se tornou o berço da pasta de frutas e aperfeiçoou a técnica de doces. Por que Auvergne? Esta província era então coberta de vinhas que eram pontilhadas de árvores de fruto para combater as doenças. Com esta quantidade de frutas (damascos, maçãs, pêras, ameixas e marmelos) fica fácil produzir geleias de alta qualidade, usadas principalmente para promover a digestão.
Mais tarde, em plena Renascença, Nostradamus (1533-1566), médico pessoal de Catarina de Médici, continuou a enaltecer os seus méritos “tanto pelos usos da medicina como pelas delícias da boca”.
Note-se que Clermont-Ferrand foi o ponto de partida da primeira Cruzada (1095-1099) e permaneceu um grande centro de referência. No regresso dos cruzados, as receitas da doçaria árabe provavelmente passaram por lá, e pode-se imaginar a origem da pasta de frutas na região, reforçada pela forte presença de árvores frutíferas.
E novos medicamentos surgem através da confeitaria:
- Grisette de Montpellier – século XIII
Muitas vezes citado como sendo o doce mais antigo da França juntamente com a Dragée de Verdun, este pequeno doce redondo feito de alcaçuz, mel e açúcar foi inventado pelos boticários da Faculdade de Medicina de Montpellier em 1220 para tratar a tosse (ação expectorante e calmante da tosse) e como anti-inflamatório no trato digestivo e no estômago. Também permitiu uma melhor digestão.
Se a Grisette surgiu em 1220 em Montpellier, não é por acaso porque ali se encontraram os 3 ingredientes necessários para a sua elaboração: Alcaçuz introduzido no sul de França e no Languedoc no século XIII, o mel e em particular o de Narbonne reputado desde a antiguidade como sendo “o melhor do mundo” e finalmente o açúcar que chegou por Montpellier.
- A Dragée de Verdun – século XIII
Este “confeito”, tradicionalmente distribuído em batizados e casamentos, é muito antigo e foi criado em 1220 por um boticário de Verdun. Possibilitou a luta contra a esterilidade e também foi vendido a mulheres (grávidas ou não) para promover sua gravidez. Também foi consumido para melhor desempenho na respiração e digestão.
Curiosamente, a Dragée de Verdun, feito de amêndoas e açúcar, foi inventado em Verdun, uma cidade no nordeste da França localizada muito longe dos locais de cultivo de amendoeiras e cana-de-açúcar. Isso também não é coincidência. Nos séculos 12 e 13, Verdun experimentou sua idade de ouro. Comercializava metais, vinhos, tecidos, cereais e especiarias (incluindo açúcar e amêndoas) com toda a Europa até à Espanha muçulmana.
- A bola de goma (chiclete) – século XV
Última grande confeitaria usada para curar, a bola de goma (chiclete) surgiu no século XV em Montpellier com a descoberta da goma arábica (seiva de acácia) nas costas do Senegal e da Mauritânia. Desembarcada no porto de Lattes (o porto de Montpellier) a goma arábica é introduzida em grandes quantidades na terra do alcaçuz. Os boticários da cidade tiveram então a ideia de misturar goma e açúcar e aromatizá-lo com alcaçuz, flor de laranjeira ou violeta.
Não calórica e prebiótica natural, a goma arábica é rica em fibras e possui alto teor de cálcio benéfico para articulações e ossos. As bolas de goma eram famosas por suas propriedades terapêuticas e calmantes (capacidade de eliminar a inflamação digestiva e respiratória).
Muitos anos depois, Maria Antonieta a recomenda a seus amigos. Em junho de 1780, ela escreveu a Charlotte da Saxônia: “Sofri tanto com meu resfriado e vejo tantas pessoas com resfriados que me ocupei apenas disso, para prevenir ou curar seu resfriado. Estou lhe enviando, minha querida princesa, um pequeno estoque de chicletes: espero que faça tanto sucesso para você quanto para mim, o que me leva muito melhor: estou começando a ter uma voz muito bonita. “
açúcar: de remédio a veneno
Muitos outros doces apareceram mais tarde, mas foram consumidos principalmente por pura ganância, mesmo que recebam algumas virtudes, às vezes por superstição, como o calisson de Aix supostamente para lutar contra a peste. Não acreditamos muito desde o século XVI nas propriedades terapêuticas dos doces. Tanto que, em 1572, um cartógrafo de Antuérpia, Abraham Ortélius, testemunhou: “Enquanto antes o açúcar só podia ser adquirido em boticários, que o guardavam apenas para os doentes, hoje ele é devorado por gula. O que antes era remédio agora é comida.”
Pior ainda, a partir do início do século XVII, o açúcar começou a ser alvo de violentas críticas de alguns médicos, que não hesitavam em considerá-lo um veneno. Foi assim que Joseph Du Chesne (1544-1609), médico do rei Henrique IV, declarou: “o açúcar, sob sua brancura esconde uma grande escuridão.”
Assim como as especiarias, o açúcar passou gradualmente do status de remédio para o de alimento, um alimento precioso, “refinado” e considerado bom para a saúde. Depois, com a chegada do açúcar das Índias Ocidentais, atingiu todos os níveis da sociedade. É a partir desta data que perde a sua aura. Portanto, açúcar e confeitos (isso também vale para o álcool e muitos outros alimentos) são considerados prejudiciais à saúde assim que são consumidos em excesso.
E eu quero terminar esse texto com uma questão, para que você, após terminar de ler, pense a respeito e reflita: o AÇÚCAR era amplamente utilizado como base de medicamentos para cura de males e hoje é tão demonizado e apontado como maléfico. Por quê? Por falta de equilíbrio de seu consumo, ou talvez pela decadência na técnica de produção ao longo dos anos, ou talvez por moda, ou, na pior das hipóteses, por se popularizar, e assim perdeu seu valor?
Me conta aqui embaixo qual sua opinião!
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