Memória olfativa te faz lembrar de algum momento vivido, pois temos a capacidade incrível de associar cheiros e gerar memória no cérebro
TEXTO POR JORGE GONÇALVES
Feche os olhos… relaxe… tente esvaziar sua cabeça com fatos atuais e vá, aos poucos, voltando no tempo, no começo da sua vida… quando você era criança, o mais longe que puder, até as primeiras memórias… chegue até o primeiro lugar onde você lembra que esteve, ou a primeira coisa que lhe vier a mente sobre a infância, algo que te tocou muito, seus primeiros passos… e será lá que vai achar… é lá que está guardado o “primeiro cheiro”, o primeiro aroma que sentiu na vida… pense… respire, pense mais um pouco, e até será possível reviver esse cheiro… e quando chegar nesse ponto, me diga: qual o primeiro cheiro que sentiu na sua vida?
Foram mais ou menos essas as palavras que ouvi, certa vez, em um curso de aromacologia (ciência que estuda os efeitos psicológicos e fisiológicos dos aromas, e afirma que o olfato está diretamente ligado às emoções, o que explica a influência dos cheiros sobre o humor, o comportamento e até mesmo sobre a interação humana) e as palavras da palestrante proporcionou uma experiência sensorial que nos guiou até um passado bem distante, que imediatamente e unanimamente despertou sensações e recordações únicas.
De fato, eu puder “sentir” novamente aquele cheiro, é impressionante como funciona e tudo o que ela disse fez parte de um processo para reativar essas lembranças. E é emocionante!
E após uma pequena pausa para que todos pudessem relembrar os cheiros, ela começa a perguntar quem poderia compartilhar. Eis que uma das participantes levanta o braço e vai até o palco nos contar. Ela inclusive descreve a lembrança, dizendo que sempre que ia visitar sua avó, avistava no caminho que fazia um tipo especifico de flor e que exalava um perfume muito forte, semelhante ao de flor de laranjeira. Esse aroma marcou tanto que ficou registrado em sua memória e sempre que ela sente esse cheiro “no ar” lembra com carinho e associa às visitas a casa da avó. Tempos depois, já adulta, ela descobriu que esse aroma não era de flores de laranjeira, mas sim de uma planta chamada murta.
Para quem não conhece, a murta é uma arvore de médio porte nativa do sul da Índia, e aqui no Brasil é muito utilizada na arborização urbana. Parente dos citros, ela produz o ano todo pequenos cachos com florzinhas brancas e muito perfumadas que exalam um aroma muito semelhante ao de jasmim e também de flor de laranjeira. O mais engraçado de tudo isso é que, conforme ela ia descrevendo, eu tive outra recordação sobre memórias olfativas na infância: a maioria da minha família mora no interior de São Paulo, e grande parte dos antepassados estão sepultados no cemitério da mesma cidade. E toda vez que eu e meus pais íamos visitar os parentes, sempre passávamos pelo cemitério, e me lembro de sentir um cheiro floral muito forte porém agradável, doce e fresco. O calçamento dos jazigos era todo sombreado por pequenas árvores de tronco lenhoso e copa com um formato meio arredondado, cheia de cachos de pequenas flores brancas. Eu passei uma parte da infância associando esse cheiro a visitas ao cemitério, e pra mim esse era o aroma da paz eterna. E foi nessa mesma época e cidade que também vi pela primeira vez as flores de laranjeira (a região, na época, era uma das maiores produtoras de laranja do país) porém como o perfume cítrico das laranjas era muito mais forte e marcante, eu não relacionava uma coisa com a outra. Foi somente anos mais tarde que descobri o Neroli (não vou me aprofundar muito aqui, mas o tema é tão complexo e interessante que vale muito a pena um texto sobre ele) que nada mais é que um óleo essencial extremamente sofisticado, extraído das flores de laranjeira e outros cítricos.
E já que estou falando dos “citrus”, certa vez estava fazendo um lote de gelée de limão siciliano, e enquanto ela fervia na panela, algo diferente me fez ter uma recordação, o cheiro me remeteu a um perfume que usei muito entre os anos 2000 e 2005, o Pour Homme da Dolce&Gabbana. Quando senti o aroma, associei imediatamente aquela fase da minha vida, marcada por essa fragrância. Fui checar a composição e conclui que minhas memórias olfativas estão alinhadas com ele, por isso, inesperadamente, revivi tudo em minha mente.
NOTAS DE SAÍDA: tangerina, bergamota, néroli e cítricos NOTAS DE CORAÇÃO: pimenta sálvia e lavanda NOTAS DE FUNDO: cedro, tabaco e fava tonka
Algumas pessoas tem o olfato e as memórias olfativas bem mais aguçadas que outras, cada um tem uma percepção e “calibragem” dos aromas na memória. Alguns se lembram mais de rostos, números e imagens, outros tem nos cheiros seus maiores registros da vida.
Digo isso por que mais um voluntário se prontificou a compartilhar suas lembranças. Ele já começou dizendo que era péssimo com cheiros, que por vezes não conseguia distinguir, por exemplo, orégano e tomilho, que nunca foi uma pessoa que tivesse suas memórias ligadas a aromas, e que por isso estava ali, na tentativa de entender, estudar e aprender sobre o assunto. E que esse exercício foi muito importante por que nunca tinha parado para pensar sobre, e como eu estava próximo ao palco, pude perceber que seus olhos começaram a encher de lágrimas. Ele era um rapaz de mais ou menos 40 anos e nos contou que enquanto ouvia as palavras da palestrante, um filme veio em sua cabeça: ele foi criado pelos avós maternos, e como eram somente os 3, sua avó trabalhava fora para ajudar o marido e ele passava a maior parte do dia com o avô, que tinha uma barbearia. Com o tempo, ele ia crescendo e o avô o deixava “brincar” com os cremes e loções, dizia que ia ensinar o ofício ao neto, mas que precisava treinar em sua barba para que, quando fosse atender um cliente, já estivesse preparado. Então ele contou que nos finais de expediente o avô se sentava na cadeira e colocava um pouco de loção pós-barba em suas pequenas mãos e o ajudava a subir numa espécie de engradado de madeira para que tivesse alcance e ensinava como deveria aplicar no cliente. Ao final, como uma recompensa pelo “bom trabalho”, o avô o abraçava e sempre dizia com um sorriso no rosto: meu menino está crescendo e aprendendo, logo logo estará pronto para assumir isso tudo! E enquanto abraçava, o registro mais antigo e marcante de um aroma ficou registrado, e já com as lágrimas escorrendo, ele disse que, sendo assim, seu primeiro registro olfativo era de loção pós-barba. Ele confidenciou que acabou indo trabalhar na área de beleza e estava emocionado por que esse exercício o fez confirmar o quanto os avós são tudo para ele, que mais que avós, são pais e amigos e que tudo o que ele é, deve a eles. Que esse “cheiro” representa a importância que eles tem em sua vida. E foi tão marcante que, aplaudido, ele voltou ao seu lugar, e percebi que mais pessoas estavam com lágrimas pelo rosto…
Uma outra pessoa relatou que toda vez que sentia o cheiro de canela, lembrava dos bolinhos de chuva que sua mãe fazia. Ela os passava numa mistura de açúcar com canela e servia sempre nos finais de tarde. Por anos esses bolinhos foram o que ela mais gostava de comer.
Mas teve uma pessoa que, ao contrario de todos os depoimentos, disse que sua primeira memória olfativa era relacionada a algo ruim, mas que mesmo assim ele gostaria de contar. Disse que o “odor” que mais o marcou foi o cheiro de tremoço. Ele contou que todos os finais de semana (desde que ele se recorda até alguns anos depois) seu pai passava o dia comendo essas sementes em conserva e tomando cerveja, as vezes alternava com pinga, algo sem limites, que tinha hora para começar mas não para acabar… e que já no final do dia, muito alcoolizado, ele perdia o controle e passava a xingar a família, e algumas vezes, agredir sua mãe. Com o tempo (festeja ele) esse mal hábito foi diminuindo até que um dia se acabou… Mas até hoje, se ele sentir esse “cheiro”, relembra dos episódios com um certo ranço e tristeza. Ele disse que já havia comentado isso com algumas pessoas e que a maioria achava estranho ele não ter essa mesma má impressão com aromas como o da cachaça ou cerveja, e a resposta sempre foi: “o cheiro do tremoço sempre era o sinal de que aquele inferno ia começar… então seja lá qual fosse a bebida, aquilo só tinha um fim…”
Silêncio na sala, e a voz num tom mais suave reaparece nos lembrando que é exatamente assim, os aromas podem nos proporcionar tanto sentimentos bons quanto outros nada desejados… Faz parte do jogo…
A essa altura você deve estar se perguntando qual foi a minha lembrança olfativa… falar de cheiros pra mim é tão poderoso e interessante que viajo sem sair do lugar. Eu sempre tive o olfato muito mais desenvolvido que audição e visão, acho que só é comparada ao paladar.
Enquanto ouvia aquela voz propondo o exercício, ia voltando no tempo, e cheguei exatamente no ponto em questão: naquele momento eu pude, inclusive, “sentir o cheiro”. Foi mágico! Consegui me ver na cena, sentado no chão da sala da casa onde morava, que ficava no bairro da Mooca, em São Paulo. Eu devia ter uns 2 ou 3 anos, talvez 4. No começo da rua tinha uma confeitaria que existe até hoje e ao lado, a fábrica do açúcar União, e todas as tardes eles torravam seu famoso café Pilão. Aquele perfume invadia a casa, era sempre no meio da tarde, e como morei nessa casa até quase os 7 anos, por todo esse tempo eu tive o grande prazer em sentir o cheiro do café sendo torrado. Até hoje, não tem uma vez que eu sinta esse perfume pelo ar e não relembre da minha infância. Esse aroma também era presente quando visitava meus avós no interior, moravam na fazenda e tinham o habito de torrar seu próprio café. Para servir entre uma partida de truco e outra, tia Helena sempre preparava um bule grande e “passava” no coador de pano. Ali todos se reuniam, os adultos pelo jogo, as crianças para observar, e eu, sempre pelo café!
Essa minha lembrança foi se afinando por que o café da tia Helena tinha um perfume único. Eu não sei explicar se o motivo era o tipo de café ou o ponto da torra, se era a água ou o amor que ela sempre teve em fazer tudo pelos outros. Só sei que essa lembrança olfativa ficou fortemente registrada em minha mente, e por pouquíssimas vezes puder senti-lo novamente.
Memória olfativa te faz lembrar de algum momento vivido, pois temos a capacidade incrível de associar cheiros e gerar memória no cérebro, e isso acontece em uma área chamada de sistema límbico, de onde provém nossas emoções, tendo os cheiros poder de interferir no comportamento humano e no seu emocional.
Quando conheci Paris fiquei muito encantado pela cidade, eu já tinha estudado o plano urbanístico de Haussmann mas foi somente quando caminhei pelas ruas que senti a verdadeira intenção daquele projeto, que era, através da construção de grandes e largas avenidas, transformar a cidade em um lugar salubre e majestoso. Me senti pequeno diante da grande e sólida Torre Eiffel. Passei pelo Louvre, Sacré Cœur e pela Catedral de Notre Dame e pude perceber o quanto são imponentes. Me senti muito bem numa cidade que tem inúmeros telhados, cúpulas e ornamentos dourados… e se tem algo que me leva de volta a sentir todas essas sensações é quando sinto o aroma de um perfume que comprei em uma loja na Place Vendôme. Ele se chama Mandragore Poupre, de Annick Goutal, uma casa de perfumaria de nicho que já vinha pesquisando a tempos… É impressionante como esse aroma ficou registrado na minha mente como sendo ” o cheiro de Paris”!
Existem estudos da Universidade Rockefeller, em Nova York, que comprovaram que as pessoas lembram mais de 35% do que cheiram, mas apenas 5% do que veem. A memória humana pode recordar mais de 10 mil aromas diferentes contra o reconhecimento de somente 200 cores. Ela é extremamente poderosa!
Então pode ser uma fruta, um grão, uma flor, uma erva ou um condimento, esse tipo de memória fica ali guardada, e ao menor sinal de um estimulo, ela vem a tona. Eu gosto sempre de citar alguns trechos de um texto que escrevi tempos atrás, que fala justamente dessa ativação das memórias através do INTERCÂMBIO de sabores que, resumidamente, fala sobre a possibilidade das pessoas se conectarem de forma especial, através de memórias. As vezes alguma fruta nos faz relembrar algo muito importante e que marcou nossa vida, e pode ser que não temos mais acesso a ela, então como reviver essa experiência, caso ela seja cultivada em outro lugar, outra cidade ou outro pais? A resposta é simples: através de GELEIAS!
Agora me conta, pra você, qual é o AROMA da sua vida?
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